24/02/2016 16:11:00 - Atualizado em 24/02/2016 16:33:00

Poeta que perdeu tudo em enchente publica seu primeiro livro

Por Luís Adorno/RedeTV!


Trecho do livro "Desaguar", da poeta Cris Rangel

"Nascem histórias/ Memórias transitam/ Uns duvidam/ Eu acredito." Ela acreditou. A poeta Cris Rangel, de 34 anos, perdeu quase todos os seus textos, escritos desde a adolescência, em uma enchente que atingiu a cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, no ano de 2009. "Nômade por natureza", como seu auto-intitula, ela estava, "como produtora, sonhando ser autora" na cidade, onde morou e participou da 5ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).

Cris afirmou ao portal da RedeTV! que o livro é "literalmente, um divisor de águas" e que a obra representa a semente artística que ela sempre quis criar. "É um primeiro passo, sabe? Eu trabalho há 15 anos lidando com a arte das pessoas, como produtora artística", conta. "Vim morar em São Paulo depois de perder tudo numa inundação. E esse tudo continha todos os poemas que escrevi desde minha adolescência. Então, hoje, após sete anos de viver a perda total, ter esse livro impresso é como um ritual de passagem, onde pode-se acreditar que a arte ela supera tudo mesmo", afirma.

A obra "Desaguar", uma compilação dos poucos poemas que restaram e criações vindas dos anos seguintes é o primeiro livro de Cris Rangel. Depois de sair de Paraty, em 2010, foi viver na capital paulista "em busca de recuperar o entusiasmo e ampliar as vivências também como produtora cultural, mas a vontade de escrever ainda estava afogada nas águas do mangue, esgoto e do rio Perequê - que corta a cidade histórica carioca", diz.

Cris denomina sua arte como poesia marginal. "Minha poesia é marginal. A arte realizada pelas mulheres sempre ficou nas margens dos autores homens. É difícil conquistar espaço. O universo poético é muito masculino. E machista. As mulheres que escreviam por muito tempo foram marginalizadas. E ainda são. Somos muito subestimadas. Veja pela Academia Brasileira de Letras. Tem uma ou duas mulheres… e elas foram nomeadas há pouquíssimo tempo".

Até que, em 2012, logo após uma separação traumática, e três anos depois da enchente, Cris sentou para produzir e nunca mais parou. No ano seguinte ela conheceu a Editora Patuá, que deu oportunidade para a publicação. "E, o mais importante, é que não se cria obras assim sozinho. Precisou um editor, uma pessoa que sabe os procedimentos para publicar e divulgar o trabalho do jeito certo. Ter aliados certos: isso que São Paulo me ofereceu", exalta. A obra custa R$ 35.

Das 96 páginas do livro, leia sete poemas que estão inclusos:

Homem rocha
enfrenta as tempestades
sente o peso do mar
sofre a força das ondas
intacto e indestrutível
se auto destrói
a cada 5 segundos
renasce em sorrisos
oferece-lhe o que beber
descontrai a tensão
de tudo
menos dos músculos dos braços
e do coração.

*

Os olhos dizem
a palavra também
cada um explica
o que convém.

*

O que seu Buda diz enquanto no supermercado você afana copos de cristal?
Esta sua imagem santa se cala enquanto desejas em décima potencia a volta das coisas que te fazem mal.

Não me faço do discurso. Não é o meu recurso.
Faço meus carinhos no mundo. Vá cheirar seu rabo vagabundo.
Ponho minha capa protetora de quem não sabe o que vestir.
Piso um passo atrás do outro pra ter aonde ir.
Não quero desistir. Caí aqui e ali. A cicatriz ainda dói e sei que posso me ferir.

Tua caridade está estampada na parede. Dá comida a quem tem fome e água a quem tem sede. Suas inimizades gritam tudo em você. Pra que saiba e não deixarão esquecer.
Disso não posso reclamar. Até meus inimigos sabem elogiar. Alguns até gostaram de ao meu lado estar. Poucos souberam aproveitar.
Não se confunda na profunda vaidade. Nesta punheta de talentos que é só uma paisagem.
Gozando uma genialidade que dorme ao relento. Os defeitos coçam a boca deste teu mundo pequeno.
Este veneno que escorre na boca de canto. Este besta e escuro plano.

*

Falam de saudade
eu tenho banzo
um sentimento manso
um passo manco
caminho sem volta
o que foi vira memória
metade lembrança
metade vontade.

*

Sendo doce sem açúcar
O meu zelo e seu café
Sorriso antes tão lumia
Mas já se foi, se ia
Fez da vida o que quiser

Céu de capim-chuva
Cinzas do meu medo
Água me tornei
Pedindo ajuda

Calma pra viver
Pedido tão eterno
Pra poder-nos ser
Valente convite de inverno.

*

Agora
Afora vai meu coração
Pra fora
Estoura esta explosão
Embora
Nada no chão
Socorra
Meus pedaços então.

*

Sai dos meus ombros
já me restam só escombros
comprei cimento novo
e um punhado de tijolos
telhas da melhor qualidade
já passei da idade
meu momento mudou
sinto que vou num lugar
onde nunca estou
deixar tanta falta de
vontade, vaidade
dizer que já passou.

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